Era um fim de tarde chuvoso quando a conheceu no casamento de um colega. Só assim mesmo para ele entrar em uma igreja, mas daquela vez valera a pena. Um outro colega seu acabara de falar, “essa é a minha namorada, Lucíola”, mas isso nem passara por perto de seus ouvidos. A imagem pálida, de cabelos negros, maquiagem que ressaltava o brilho dos olhos, emoldurados por sobrancelhas cuidadosamente modeladas, já roubara todos os seus sentidos. Ficou sem saber se a beijava, receoso de que poderia borrar sua maquiagem, mas logo ela se inclinou e ofereceu a face. Aproximou-se com cuidado do rosto de porcelana e pôde sentir o perfume doce quando encostou seus lábios nele. Deu dois passos para trás para tentar se reequilibrar, olhou para o teto, para as imagens dos santos, segurou-se em um banco e olhou novamente para ela.
Com seu vestido tomara-que-caia negro brilhante, parecia recém saída de uma caixinha de música, daquelas onde há uma bailarina a girar. Seu colega de faculdade já se ausentara, já que serviria de padrinho na cerimônia. Ele ficou sem saber o que fazer, ajuntou-se aos demais colegas e tentou conversar amenidades. Contudo, ao olhar para o fundo da igreja, viu a imagem da bela novamente, sentada, afastada, em um banco. Com os olhos fechados, parecia flutuar no meio da expectativa em torno da chegada da noiva. Ele conseguia apenas divisar o seu rosto cândido e seus ombros desnudos. Alguns fios de seu cabelo riscavam o colo.
Sentiu de imediato uma solidão profunda, ao vê-la solitária. Pensou em chamá-la, para se juntar ao grupo, mas não teve coragem de interromper o possível sono em que estava, afinal, permanecia a linda criatura de olhos fechados.
A noiva finalmente chegou, todos diriam mais tarde com ela estava bela, de branco, naturalmente, mas ele só conseguiria pensar na moça de negro.
Encerrada a cerimônia, ele partiu, sozinho, em seu carro, pelas ruas escurecidas da cidade. Nuvens negras ajudavam a encurtar o dia e a chuva a paralisar o trânsito. Aproveitou a inércia para perguntar a um transeunte, que trajava a camisa do time de seu coração, o resultado do jogo que a pouco se encerrara. Abriu um sorriso (o segundo do dia) ao saber do resultado positivo (o único da noite).
Cruzou veloz a cidade, após o engarrafamento cessar, quase sendo multado pela fiscalização eletrônica e, após errar por duas vezes o caminho, chegou ao local da recepção. Logo que estacionou e desligou o carro, a bela chegou ao seu lado, no carro de seu escolhido. Um sinal?
Subiram juntos, com outros colegas, até o andar da festa. Meias-luzes, balões coloridos e música tomavam o ambiente. Sentou-se na mesa escolhida pelos outros e esperou pela bebida. Nada de cerveja ou líquidos de baixo teor alcoólico, apenas espumante e whisky eram servidos pelos garçons. Pensou que sua última refeição tinha sido o almoço, há pouco mais de oito horas, mas não pôde resistir aos brindes em homenagem aos recém-casados.
Uma taça acompanha a outra. As conversas mudam de tom, o som parece ficar mais alto. Vários de seus colegas vão para pista de dança acompanhar os nubentes. É nesse momento que ele se vê ao lado de sua mais nova paixão servindo-se graciosamente de uma taça de líquido borbulhante. De repente já estão conversando, como velhos amigos, sobre trabalho, música e afins. Mas é claro que o tema principal da conversa é a vida dela com o seu colega, de como se conheceram e porque estão juntos. Ele se derrete em elogios ao colega e ela, claro, confirma todos.
Mal consegue olhar para ela, cada vez mais apaixonado fica, com aqueles olhos que dividem o ambiente em dois, aqueles ombros brancos que desafiam o toque. Inventa qualquer desculpa e vai para a pista de dança. Mal reconhece a voz de outra colega que vem lhe pedir desculpas por algum erro passado. Ouve a repetitiva música de duas décadas atrás, a felicidade nos rostos dos convivas e os passos de dança, com um sorriso nos lábios e a taça na mão.
É quando vê a imagem da jovem se equilibrando nas pontas dos dois pés, girando sobre eles, com seus vestido negro tomara-que-caia. Quando ela completa 360º, mostra todos os seus dentes para ele e o seu olhar reflete toda a felicidade que ele nela encontrará.
Ele só pode estar sonhando. Vira-se para outra direção e vê o seu colega, par de sua bela, a dançar com a noiva. A realidade é dura e afiada como a ponto de um punhal. Ele cambaleia, ouve vozes, diz que está tudo bem e se dirige ao banheiro. Tranca-se em um dos cubículos e se ajoelha diante da privada. Antes de cair a primeira lágrima, a mistura verde do que antes eram canapés, escorre pela sua boca até o chão. Uma vez mais, e mais outra vez, até sentir uma profunda agulhada em suas entranhas. Nada mais resta a sair (ou a entrar). Tenta se levantar, mas escorrega. Só consegue reunir forças para sentar-se na louça. Fecha-se em seu paletó, recosta-se na divisória de madeira e seus olhos se cerram.
***
O mar. Azul e sem fronteiras. Ele nada no mar azul, sozinho, nada a seu redor. Uma tempestade o surpreende, ele rodopia e acorda.
Três pessoas além dele se espremem no cubículo. Um arremessa água, outro lhe dá tapas na cara e o terceiro grita seu nome. Com os olhos ainda entreabertos vê que um deles é o par de sua bela. Mas onde ela estaria? Não importa mais, ele só quer ficar ali e dormir, tenta se livrar dos braços alheios mas não tem mais forças, nem para isso.
O levam carregado pelo meio do salão e tudo no que consegue pensar é se sua bailarina irá vê-lo naquele estado. Chegam até o elevador e nem sinal dela. Chegam até o seu automóvel, e nem sinal dela. Ele aproveita o descuido de seus colegas, que discutiam o que fazer com sua carcaça, e corre pelas ruas ainda vazias do centro da cidade. Percorre ruelas e avenidas ainda molhadas, atravessa por uma passarela em forma de “S”. Verifica, de repente, que está na frente do aeroporto. Vai até o saguão principal, quase totalmente vazio, e se senta de frente para a grande janela. Ao longe, o outro lado da baía. Mais próximo, um barco cruza o mar. Ao seu lado, um avião parado. Dentro de si, um coração renovado. Além de todos os seus medos, uma vida sonhada.
Uma platéia vazia, a não ser por ele próprio, sentado, na primeira fileira, vendo a bela bailarina a dançar e sorrir.
Quase todas as noites em que chega em casa necessita, urgentemente, de salvação. Salvar-se pela música.
Procura em sua lista de mp3´s , em sua coleção de cedês, mas nada encontra capaz de mudar sua vida, aquele singelo tormento, torná-lo passado.
Algumas vezes é necessário apenas uma canção para mudar todo um dia, para o bem ou para o mal. Para o mal como quando se ouve aquela música chata e repetitiva, logo ao pegar o ônibus pela manhã, e ela fica em sua cabeça por horas e horas, apesar de você odiá-la.
Ou para o bem, quando basta a música para mudar seus sentimentos em relação a vida como um todo. E é a noite, quase sempre, que ele precisa dessa mudança, ou melhor, dessa renergização, recarregar as já castigadas baterias, para tentar sobreviver até o dia seguinte. A salvação pela música nem sempre é possível, contudo, pois pode faltar o compacto ou mesmo a escolha correta para a ocasião.
A música certa é aquela que lhe faz abrir o sorriso.