Só não terei mais a minha vozinha para declamar
Le chat
(Les Fleurs du mal)
Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux ;
Retiens les griffes de ta patte,
Et laisse moi plonger dans tes beaux yeux,
Mêlés de métal et d'agate.
Lorsque mes doigts caressent à loisir
Ta tête et ton dos élastique,
Et que ma main s'enivre du plaisir
De palper ton corps électrique,
Je vois ma femme en esprit. Son regard,
Comme le tien, aimable bête,
Profond et froid, coupe et fend comme un dard,
Et, des pieds jusques à la tête,
Un air subtil, un dangereux parfum,
Nagent autour de son corps brun.
(Charles Baudelaire)
Se eu tivesse que escrever algo sobre mim, não chegaria nem perto do que esse cara aí de baixo escreveu. Ele deve ter me visto em algum lugar ou, mais provável, de alguma forma adentrou meu ser, se serviu dessa couraça, para perscrutar o que por aqui passava. Me calo. Silente eu sigo, não tenho mais nada a dizer. Ele disse tudo.
Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.
A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real.
Não chega nunca a vez
Para mim.
"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.
"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.
Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.
Fernando Pessoa, 13-1-1920.
A MORTE DOS POBRES
A morte é que consola e que nos faz viver
É o alvo desta vida e a única esperança
Que, como um elixir, nos dá fé e confiança,
E forças para andar até o anoitecer.
Em meio à tempestade e à neve a se desfazer,
E a luz que em nosso lívido horizonte avança,
E a pousada que um livro diz como se alcança,
E onde se pode descansar e adormecer.
E um arcanjo que tem nos dedos imantados
O sono eterno e o dom dos sonhos extasiados,
E arruma o leito para os nus e os desvalidos;
E dos deuses a glória e o místico celeiro
E a sacola do pobre e o seu lar verdadeiro
O pórtico que se abre aos Céus desconhecidos!
(Charles Baudelaire)