- Eu quero uma menina que dance!
- Mas isso é mole cara, vamos numa boate qualquer que eu...
- Você não tá entendendo... Eu quero uma menina que dance coladinho,tu já deve ter visto ao menos em filme, daquele tipo que você pegapela cintura e ela coloca a mão no seu ombro, saca?
- Ah, entendi... tu vive no século retrasado mesmo... Por que essa idéia fixa?
- Putz, tu nunca deve ter tido a oportunidade de dançar com alguém desse jeito. Não sabes o que estás perdendo, século atual ou não , não meimporta realmente. Eu já tenho a cena em minha cabeça, e só disso preciso.Ela tem que ser branca, alva, tipo, cor de leite. Não pode ser cor de neve, tem que ser cor de leite! Branquela cor de leite!
- Fala sério! Com tanta moreninha passeando pela praia de biquininho e vocêquer uma leite azeda da vida? Não acredito.
- Ok, deixo aquelas gatinhas de Ipanema pra você. Mas agora se concentra no que eu to pedindo.
- Tá tá, conta logo então.
- Mas é só isso mesmo. Ela tem que saber dançar e ser braquela cor de leite. Ah, e tem que estar de vestido, de alça! aqueles tomara-que-caia não serve, afinalela nem vai ter busto suficiente para sustentá-lo...
- Mais essa! A mulher não pode ter peito é? Branquela, tábua... O que mais tu vai querer? Aparelho nos dentes?
- Boa lembrança! Um sorriso metálico é um detalhe precioso. Imagine só aquele sorriso!Vou poder falar de boca cheia para ela: que sorriso mais brilhante.
- Sem piadas, por favor, não é a sua especialidade, deixe o humor comigo.
- Tem mais uma coisa... cabelos negros. Para ressaltar mais ainda a pele branca e esta, porsua vez, ressaltar ainda mais os cabelos escuros e por ai vai. E tem que ter olheiras negras,cabelos negros, pele branca... tá anotando?
- Ah cara, nem precisa... vou passar ali no São João Batista e arranjar uma dessas para você.
- Pô, tu não me leva à sério mesmo né? To falando que to apaixonado pela moça que sabe dançar, de cabelos negros...
- Tá tá tá, não precisa repetir a descrição da defunta!
- ... pele alva como o leite, olheiras, ...
- Mas você nem conhece essa mulher! Como pode dizer que está apaixonado?
- Como ousa dizer que não conheço? Ela me acompanha a cada dia e a cada noite, por onde eu ande ou fique estático. Vejo ela nas multidões, no rosto da garçonete, nos fárois vermelhos dos carros, no sono que não vêm...
- Tá bom, cara, chega! Eu vou providenciar essa mulher pra você, só para com essa fala melosa, pelamordedeus!
- Muito obrigado meu amigo, sabia que poderia contar contigo... mas, se não fosse pedir demais, que taluma tatuagem nas costas, tatuagem negra, claro, só para contrastar?
Meu coração está negro. O ar que eu respiro atravessa um caminho de carne podre cancerosa que começa no nariz e termina com uma pontada em algum lugar nas minhas costas. Quando penso em José Roberto um raio de luz corta o meu coração. Ilumina e dói. Às vezes penso que minha única saída é o suicídio. Fogo às vestes? Barbitúricos? Pulo da janela? Hoje à noite vou à boate.
(Rubem Fonseca - “ Lucia McCartney”)
É cíclico. Chega um dia, numa semana, de um mês qualquer, em que é necessário senti-la novamente. Fundo. Bem lá no fundo. Brota e vem subindo pelo esôfago até a boca. Dá ânsia de vômito. Aquela dor no corpo, a repulsa. Mas ela não sai.
Fica ali inquieta mas interna.
É um processo pelo qual sempre tenho que passar. Eu sei disso, mas não há como se preparar. Posso pensar em dezenas de metáforas para ela. O final de uma partida de futebol;as duas horas de um filme; os 10 segundos de uma queda livre. Não há como pensar no final antes do final se não você fica sem o "meio", o recheio, a substância da vida.
Uma frase me vem instantaneamente à cabeça:
"Melhor um fim com terror do que um terror sem fim" Fausto - Goethe
Nada mais apropriado.
Só a Maria Callas nos ouvidos e a Anna Karina nos olhos para me consolar.